segunda-feira, 23 de junho de 2014

Watchmen: A intolerância de querer salvar o mundo.

                                       
                                               Avante, avante Super-heróis!

     Sabemos a partir do monomito ( ideia de que todos os mitos humanos fazem parte de um único mito, defendida pelo antropólogo Joseph Campbell ) que o heroísmo é arquétipo da alma humana, o herói existe em todas as culturas e lendas como um centro de consciência luminosa que luta contra perigos do inconsciente obscuro. Esse arquétipo é o centro da mandala da psique humana, que ensimesmado entra em conflito com o todo exterior.  E o mais interessante é que esse conceito é análogo em vários sentidos microcósmicos e macrocósmicos:

     —O centro de um átomo que coordena a movimentação eletrônica, pois da mesma forma que os elétrons têm o papel de se equilibrarem ao redor do núcleo atômico, o inconsciente forma uma rede de movimentos sincrônicos para conter e circundar uma individualidade consciente. Assim como os perigos que agem na vida do herói.

     —O homem em conflito interno buscando sua verdadeira vontade, em busca de seu centro para poder ser o herói de sua própria vida, sem se perder em caminhos falsos.

     —Uma aldeia que precisa de um campeão para se proteger de perigos da floresta.

     —Uma religião ou um movimento que precisa de um líder para trazer a salvação dos perigos da vida e da sociedade.

—O sol que fornece um campo gravitacional para o sistema solar.

—O centro de uma galáxia.

E por ai vai....


     Um interessante desdobramento do arquétipo do herói é o ideal moderno de Super-Herói. Surgiu-se nos quadrinhos, personagens com a cueca por cima das calças e com toda a disposição de querer salvar o mundo, perdendo apenas para a disposição espetacular que tem um coxinha sentado de cueca no sofá indignado com os perigos da cidade relatado em telejornais sensacionalistas. É sobre esse desdobramento do arquétipo heroico que quero falar aqui. Eu quero falar sobre Watchmen!
     Watchmen é uma das mais aclamadas grafic novels de todos os tempos, escrita pelo mago dos quadrinhos, Alan Moore, e ilustrada por Dave Gibbons. E o que diferencia esse quadrinho de super-herói de todos os outros é a humanidade moral e psicológica dos personagens, quando se diz que Watchmen é realista, diz-se por conta da profundidade psicológica dos personagens e não pelo fato de a história soar verídica. Como seria se um homem tivesse inteligência suficiente para mudar o mundo? Como seria se um homem recebesse poder a ponto de ser tornar um deus perto da humanidade?
    É interessante pensar que querer salvar o mundo é um desejo de extrema presunção, uma vez que , para isso, a pessoa deve crer que acredita ter a solução para salvar o mundo, e além disso, quem disse que o mundo precisa ser salvo?
    Se pararmos para pensar que a existência possui uma fonte arquetípica, creio que nessa fonte exista o todo, e talvez o universo seja justo por conta de ser ilimitado. Se essa fonte inclui tudo, ela inclui todos os opostos dentro dela mesma. Portanto o mal existe infinitamente em possibilidades infinitas assim como o bem, lutar contra o mal não vai mudar nada, pois ele será compensado novamente, o tempo é um círculo plano, as coisas se repetem, sumir com a  existência de um psicopata assassino não vai resolver nada pois essa postura psicológica faz parte da gama de possibilidades existenciais da psique humana. Não tem como salvar o mundo, pois a existência é o que é, o máximo que alguém pode fazer é combater algo por simples vontade e gosto de fazer isso. Combater algo pelo simples fato de querer ser um mártir seria uma mera inflação de ego. A obra Watchmen sintetiza isso tudo. E para falar sobre isso, gostaria de analisar alguns personagens da HQ:
                                      
1-          Rorschach, o sociopata:





           Sobretudo, chapéu de detetive e uma máscara com desenhos plásticos estilo Hermann Rorschach que vão se alterando, esse conjunto é o uniforme que caracteriza esse personagem sinistro e perturbado. Uma infância suburbana e carregada de violência fez seus traumas, e através deles, Rorschach buscou sua força para querer combater o mal, “evil must be punished”. Deixou sua vida, conforto e identidade para viver disso.  É muito marcante nele, as suas intolerâncias e preconceitos com certos grupos e gêneros sociais. ( é uma personagem muito parecida com Travis Bickle do filme Taxi Driver).
            O interessante de Rorschach é que ele faz de si a sua própria filosofia de vida, combatendo         o mal por gosto. Mas como alguém com preconceitos, com visões distorcidas e obscuras pode         saber qual é a solução para salvar o mundo?
                                 
2-      Adrian Veidit (Ozymandias): 




           Conhecido como o homem mais inteligente da Terra, elevou seu potencial mental e físico ao máximo que podia, um homem movido pela vontade de poder. Ciente de que pode mudar o mundo, mas, para isso precisaria fazer o que for preciso. Toda a sua inteligência e brilhantismo converteu-se em arrogância e prepotência. Todos os seus  planos acabaram sendo em vão, o que prova que posse de conhecimento não é suficiente para “salvar o mundo” .
                                                        
3-      Dr. Manhattan:



                             Basicamente o único personagem com poderes que vão além do humano. Um acidente de laboratório transformou-o em um Deus na terra. Mentalmente, fisicamente, e espiritualmente, muito além da capacidade humana. Ele se torna uma importante peça política e de equilíbrio em um mundo na Guerra Fria. Mas ao longo da história, começa a ficar distante do humano e isso desperta uma grande indiferença nele quanto à humanidade.

                        A capacidade de calcular todas as possibilidades quânticas, ter uma percepção temporal avançada, talvez fez Manhattan perceber a realidade como é, e isso o leva a deixar para traz toda a humanidade, mesmo tendo muito poder para ajudar o mundo.Um super-man na terra estaria ligando para pequenos e corriqueiros problemas humanos? Será mesmo que ele salvaria pobres gatinhos presos em árvores?
                                 
4 – Comediante:



        Um mercenário destruidor e autodestrutivo. Um interessantíssimo personagem, com várias camadas psicológicas. Primariamente ele é um péssimo exemplo moral. Mas conforme se passa a história, percebe-se que o que o faz ser assim é uma descrença com a humanidade, talvez a percepção de que o mundo não precisa ser salvo ou até mesmo a responsabilidade que ele tem em sua mão como herói se transformou em profunda angústia e má-fé. Percebendo os males e a hipocrisia da humanidade, se torna uma sátira sádica de tudo que o incomoda, mas chora em amargura dentro de si. Uma fala de Rorschach resume bem o comediante:

        “Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto.
O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo."
O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci."
Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Descem as cortinas.
"  
                          
4-      Coruja: 

                

              Talvez o único personagem que conseguiu um gosto intrínseco em ser um super-herói. Justamente pelo fato que ele é um herói por simples gosto, com uma verdadeira vontade de ser. É desiludido, também por influência do pensamento do Comediante, mas ao longo da história encontra a vontade de ser herói dentro de si novamente. E seu prazer pela vida retorna.

               Watchmen é uma grande sátira ao universo dos super-heróis, até porque nenhum dos heróis do HQ consegue salvar o mundo. O quadrinho é uma reflexão filosófica sobre a ideia de ser super-herói. Acredito que há uma alusão entre a ideia de super-herói com superego. Justamente porque superego é definido pelas seguintes características:

“O superego tem três objetivos:

1.   inibir (através de punição ou sentimento de culpa) qualquer impulso contrário às regras e ideais por ele ditados (consciência moral);
2.   forçar o ego a se comportar de maneira moral (mesmo que irracional) e
3.   conduzir o indivíduo à perfeição - em gestos, pensamentos e palavras (ego ideal).”

     Por conta disso, creio que existe uma diferença crucial entre a ideia de super-herói e o arquétipo do herói. O primeiro é um desdobramento relativo ao superego, enquanto que o segundo é a função essencial da psique, o centro dela. Portanto, na minha visão, o desejo de querer salvar o mundo é apenas um mecanismo de defesa para inflar o ego, uma defesa para suprimir os medos e intolerâncias. Suprimindo fatores existentes, inatos e inevitáveis, como a “maldade do mundo”, usando de julgamentos morais.

Para finalizar deixo uma música como reflexão:




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