Avante, avante Super-heróis!
Sabemos a partir
do monomito ( ideia de que todos os mitos humanos fazem parte de um único mito, defendida pelo antropólogo Joseph Campbell ) que o heroísmo é arquétipo da alma humana, o herói existe em todas
as culturas e lendas como um centro de consciência luminosa que luta contra
perigos do inconsciente obscuro. Esse arquétipo é o centro da mandala da psique humana,
que ensimesmado entra em conflito com o todo exterior. E o mais interessante é que esse conceito é
análogo em vários sentidos microcósmicos e macrocósmicos:
—O centro de um
átomo que coordena a movimentação eletrônica, pois da mesma forma que os
elétrons têm o papel de se equilibrarem ao redor do núcleo atômico, o
inconsciente forma uma rede de movimentos sincrônicos para conter e circundar
uma individualidade consciente. Assim como os perigos que agem na vida do
herói.
—O homem em
conflito interno buscando sua verdadeira vontade, em busca de seu centro para
poder ser o herói de sua própria vida, sem se perder em caminhos falsos.
—Uma aldeia que
precisa de um campeão para se proteger de perigos da floresta.
—Uma religião ou
um movimento que precisa de um líder para trazer a salvação dos perigos da vida
e da sociedade.
—O sol que fornece um campo gravitacional para o sistema
solar.
—O centro de uma galáxia.
E por ai vai....
Um interessante
desdobramento do arquétipo do herói é o ideal moderno de Super-Herói. Surgiu-se
nos quadrinhos, personagens com a cueca por cima das calças e com toda a
disposição de querer salvar o mundo, perdendo apenas para a disposição
espetacular que tem um coxinha sentado de cueca no sofá indignado com os
perigos da cidade relatado em telejornais sensacionalistas. É sobre esse desdobramento do arquétipo
heroico que quero falar aqui. Eu quero falar sobre Watchmen!
Watchmen é uma das
mais aclamadas grafic novels de todos os tempos, escrita pelo mago dos
quadrinhos, Alan Moore, e ilustrada por Dave Gibbons. E o que diferencia esse
quadrinho de super-herói de todos os outros é a humanidade moral e psicológica
dos personagens, quando se diz que Watchmen é realista, diz-se por conta da
profundidade psicológica dos personagens e não pelo fato de a história soar
verídica. Como seria se um homem tivesse inteligência suficiente para mudar o
mundo? Como seria se um homem recebesse poder a ponto de ser tornar um deus
perto da humanidade?
É interessante
pensar que querer salvar o mundo é um desejo de extrema presunção, uma vez que ,
para isso, a pessoa deve crer que acredita ter a solução para salvar o mundo, e
além disso, quem disse que o mundo precisa ser salvo?
Se pararmos para
pensar que a existência possui uma fonte arquetípica, creio que nessa fonte
exista o todo, e talvez o universo seja justo por conta de ser ilimitado. Se essa fonte inclui tudo, ela inclui todos os opostos dentro
dela mesma. Portanto o mal existe infinitamente em possibilidades infinitas
assim como o bem, lutar contra o mal não vai mudar nada, pois ele será
compensado novamente, o tempo é um círculo plano, as coisas se repetem, sumir
com a existência de um psicopata
assassino não vai resolver nada pois essa postura psicológica faz parte da gama
de possibilidades existenciais da psique humana. Não tem como salvar o mundo,
pois a existência é o que é, o máximo que alguém pode fazer é combater algo por
simples vontade e gosto de fazer isso. Combater algo pelo simples fato de
querer ser um mártir seria uma mera inflação de ego. A obra Watchmen sintetiza
isso tudo. E para falar sobre isso, gostaria de analisar alguns personagens da
HQ:
1-
Rorschach,
o sociopata:
Sobretudo, chapéu de detetive e uma máscara com desenhos plásticos
estilo Hermann Rorschach que vão se alterando, esse conjunto é o uniforme que
caracteriza esse personagem sinistro e perturbado. Uma infância suburbana e
carregada de violência fez seus traumas, e através deles, Rorschach buscou sua
força para querer combater o mal, “evil must be punished”. Deixou sua vida,
conforto e identidade para viver disso.
É muito marcante nele, as suas intolerâncias e preconceitos com certos grupos
e gêneros sociais. ( é uma personagem muito parecida com Travis Bickle do filme
Taxi Driver).
O interessante de Rorschach é que ele faz de
si a sua própria filosofia de vida, combatendo o mal por gosto. Mas como alguém
com preconceitos, com visões distorcidas e obscuras pode saber qual é a solução
para salvar o mundo?
2-
Adrian Veidit (Ozymandias):
Conhecido como o homem mais
inteligente da Terra, elevou seu potencial mental e físico ao máximo que podia,
um homem movido pela vontade de poder. Ciente de que pode mudar o mundo, mas,
para isso precisaria fazer o que for preciso. Toda a sua inteligência e
brilhantismo converteu-se em arrogância e prepotência. Todos os seus planos acabaram sendo em vão, o que prova que
posse de conhecimento não é suficiente para “salvar o mundo” .
3-
Dr. Manhattan:
Basicamente o único personagem
com poderes que vão além do humano. Um acidente de laboratório transformou-o em
um Deus na terra. Mentalmente, fisicamente, e espiritualmente, muito além da
capacidade humana. Ele se torna uma importante peça política e de equilíbrio em
um mundo na Guerra Fria. Mas ao longo da história, começa a ficar distante do
humano e isso desperta uma grande indiferença nele quanto à humanidade.
A capacidade
de calcular todas as possibilidades quânticas, ter uma percepção temporal
avançada, talvez fez Manhattan perceber a realidade como é, e isso o leva a
deixar para traz toda a humanidade, mesmo tendo muito poder para ajudar o
mundo.Um super-man na terra estaria ligando para pequenos e corriqueiros
problemas humanos? Será mesmo que ele salvaria pobres gatinhos presos em
árvores?
4 – Comediante:
Um mercenário destruidor e autodestrutivo. Um
interessantíssimo personagem, com várias camadas psicológicas. Primariamente
ele é um péssimo exemplo moral. Mas conforme se passa a história, percebe-se
que o que o faz ser assim é uma descrença com a humanidade, talvez a percepção
de que o mundo não precisa ser salvo ou até mesmo a responsabilidade que ele
tem em sua mão como herói se transformou em profunda angústia e má-fé.
Percebendo os males e a hipocrisia da humanidade, se torna uma sátira sádica de
tudo que o incomoda, mas chora em amargura dentro de si. Uma fala de Rorschach
resume bem o comediante:
“Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico,
diz que está deprimido. Diz que a vida
parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se
anuncia é vago e incerto.
O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo."
O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci."
Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Descem as cortinas."
O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo."
O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci."
Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Descem as cortinas."
4-
Coruja:
Talvez o único personagem que conseguiu
um gosto intrínseco em ser um super-herói. Justamente pelo fato que ele é um
herói por simples gosto, com uma verdadeira vontade de ser. É desiludido,
também por influência do pensamento do Comediante, mas ao longo da história
encontra a vontade de ser herói dentro de si novamente. E seu prazer pela vida
retorna.
Watchmen é uma grande sátira ao
universo dos super-heróis, até porque nenhum dos heróis do HQ consegue salvar o
mundo. O quadrinho é uma reflexão filosófica sobre a ideia de ser super-herói.
Acredito que há uma alusão entre a ideia de super-herói com superego.
Justamente porque superego é definido pelas seguintes características:
“O superego tem
três objetivos:
1. inibir (através de
punição ou sentimento de culpa) qualquer impulso contrário às regras e ideais por ele ditados (consciência moral);
2. forçar o ego a se
comportar de maneira moral (mesmo que irracional) e
3. conduzir o
indivíduo à perfeição - em gestos, pensamentos e palavras (ego ideal).”
Por
conta disso, creio que existe uma diferença crucial entre a ideia de
super-herói e o arquétipo do herói. O primeiro é um desdobramento relativo ao
superego, enquanto que o segundo é a função essencial da psique, o centro dela.
Portanto, na minha visão, o desejo de querer salvar o mundo é apenas um
mecanismo de defesa para inflar o ego, uma defesa para suprimir os medos e
intolerâncias. Suprimindo fatores existentes, inatos e inevitáveis, como a “maldade
do mundo”, usando de julgamentos morais.
Para
finalizar deixo uma música como reflexão: